Estudo | Glenio Fonseca Paranaguá - O EVANGELHO DE DEUS
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O EVANGELHO DE DEUS
Depois de João Batista ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus. Marcos 1:14.
João é o último profeta do odre antigo. A velha dispensação havia chegado ao fim e o vinho novo carecia de odre novo. A prisão do derradeiro profeta é o início de uma nova realidade espiritual. A graça do Evangelho precisa substituir o legalismo da religião.
O judaísmo pós-exílio babilônico havia transformado a esperança de Israel num colete de balas, nas sinagogas. O governo Divino foi codificado nos 613 mandamentos da Torá e a comunhão do culto numa obrigação de cabresto. João aparece nesse contexto e foi preso por corrigir um déspota, sem a receita da graça. Então Jesus inicia sua prédica...
A instauração do novo pacto inaugura a era da graça que substitui o tempo da conquista. É só pela graça divina que o ser humano pode obedecer à lei de Deus. Agora, não é mais a obediência que determina a bênção, mas é esta que faz florecer aquela. No Evangelho, não obedeço para ser abençoado, mas porque sou abençoado, obedeço.
A prisão de João abriu as portas para a proclamação do Evangelho na Galiléia dos gentios. Ele havia cumprido o seu ministério apontando para o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Esta fôra a sua missão, mas agora ele estava fora do campo.
A linguagem dos profetas e as sombras foram superadas pela realidade. Não há mais espaço para o provisório, pois o Filho é a comunicação final e a Aliança eterna da graça é permanente. O Evangelho de Deus é o último discurso da redenção.
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Hebreus 1:1-2.
Aqui, neste texto, nós temos uma mudança radical. Não foram mudadas só as partituras e o ritmo da música, mas também os músicos. O que houve foi a troca de toda orquestra e do repertório. A realidade do Filho cumpriu as profecias da encarnação, bem como, deixou para trás, tudo aquilo que apontava para Ele. O Evangelho é incomparável.
Deus criou o ser humano, mas o homem quis tornar-se independente de Deus. O pecado é a presunção de autossuficiência da criatura. Como a cria não é o Criador, ela se rebela e decide tentar viver por conta própria. A base dessa autonomia é o seu orgulho. - Como posso eu admitir a existência de Deus, se eu mesmo não for Deus? Ó Nietzsche!
O pecado é a declaração de independência do Criador feita pela criatura. - Não é tanto uma transgressão da lei de Deus, mas uma rebelião contra o próprio Deus. Trata-se, antes de tudo, de uma inconformidade existencial. O homem não aceita não ser Deus. Como raça não somos ovelhas desviadas, somos rebeldes armados contra Deus.
Por isso, o casal pelado foge da presença de Deus e apela ao disfarce. Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi. Gênesis 3:10. Esse é a rota de fuga. O medo e o ativismo nos mantém fora da intimidade com o Altíssimo. Se estou entretido com meus afazeres, posso dispensar qualquer relacionamento com Deus.
A história da raça adâmica, daí pra frente, passa a ser uma trilha de escape. O ser humano é um contumaz fugitivo de Deus, escondendo-se nas moitas das religiões. E, enquanto sai de fininho do relacionamento com a Trindade, constrói seus nichos repletos de deusinhos pixotes, mantidos por ele. Religião é criação da criatura fomentando ídolos.
O pecado traz um autoconhecimento e a sensação de inadequação. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si. Gênesis 3:7. Os modelitos religiosos são costurados e vestidos pela engenhosa desfaçatez do ser humano. O casal nu quer ficar bem na foto.
A justiça humana e a moral aparente disfarçam “a pena de viver, mais nada”, e o preço da conduta fica por conta de aplausos, custe o que custar. O clero quer as praças pra oração e o público pra ovação. O óbulo vai como relatório da Unesco e o jejum é visto como um troféu de resistência dos bem dotados triatletas da “espiritualidade” fogosa.
Mas, o Evangelho de Deus nada tem com o esforço humano. Esse Evangelho, do começo ao fim, fala do Deus que busca a criatura escondida, cobrindo a sua vergonha com a suficiência do Cordeiro. Fez o SENHOR Deus vestimenta de peles para Adão e sua mulher e os vestiu. Gênesis 3:21. Apaixona-me essa postura furiosa da graça.
“A graça de Deus nunca encontra homens aptos para a salvação, mas os torna aptos a recebê-la,” dizia Agostinho. A salvação não é um prêmio para operários-padrão ou medalhas de honra aos atletas dedicados. Nada disso. A graça tem a ver com o demérito dos falidos e as feridas purulentas dos destroçados nessa guerra maligna da meritocracia.
Um morto espiritual não tem predicados espirituais para corresponder qualquer expectativa de troca de favores. Só um milagre do Pai pode dar vida, fé e arrependimento ao caído. A salvação de um morto espiritual não conta com a participação desse defunto, pois é preciso que ele seja vivificado, no seu espírito, antes de responder espiritualmente.
Tudo no reino de Deus começa com a pregação do Evangelho. Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação.1 Coríntios 1:21.
Essa pregação aqui não é tão-somente a exegese de algum texto bíblico, mas a proclamação do desvario Divino - de Sua loucura submetida à cruz. Assim, se Deus foi pra cruz, ele não pode ser Deus, pois se for Deus, não pode ser crucificado. Sem dúvida, este é o absurdo dos absurdos e, ao mesmo tempo, a lucidez do Evangelho de Deus.
Para a mente natural, o Evangelho é uma loucura inominável, mas para os que estão sendo salvos é o poder de Deus. O desatino da cruz é o tino da verdade e o destino das almas redimidas. Cristo Jesus não foi crucificado sozinho, havia mais gente naquela execução, pois sua morte era solidária e compartilhada com os seus eleitos.
Além de termos sido crucificados com Cristo, nós precisamos levar o morrer de Jesus, diariamente, em nossos corpos mortais. A cruz não foi apenas prova de vestibular, ela é o curso da existência cristã. A cruz é crucial para a peregrinação dos santos.
O apóstolo aos gentios sabia que salvação de gente é mais importante do que o ajuntamento das multidões. Sabia que a pregação do Evangelho é mais relevante que o rol de membros das organizações, por isso declarou: Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho; não com sabedoria de palavra, para que se não anule a cruz de Cristo. 1Coríntios 1:17. Como se pode tornar vã a cruz de Cristo?
Há pelo menos duas maneiras, neste verso. A primeira, é quando deixamos de anunciar o Evangelho pleno da morte e ressurreição de Cristo, bem como, de nossa morte e ressurreição com Cristo. O Evangelho de Deus é a boa notícia da cruz.
Que notícia boa pode vir de uma cruz? Como pode uma coisa má produzir algo bom? Essa boa nova é que, estou crucificado com Cristo e não vivo mais, mas Cristo vive em mim, pois, - não eu, mas Cristo - é a súmula de todo o Evangelho.
A segunda, é a preocupação com a sabedoria das palavras. Muitos de nós nos tornamos tão eruditos que ofuscamos a loucura da cruz. A ênfase à filosofia faz sumir a fúria da cruz. Queremos ser tão racionais que acabamos por banalizar o poder daquele sacrifício perverso, transformando-o apenas num extermínio de um réu.
A radicalidade da mensagem da cruz não está apenas na morte horrorosa que Cristo passou, mas no horror que essa morte nos causa, pelo fato de não sobrar nadinha para nós fazermos, nem qualquer direito a reivindicar. Ela não é cruel só porque Jesus sofreu nela, mas também, porque o meu eu, morto com Ele, ficou sem lugar no panteão.
A severidade da cruz, para nós, é a nossa extinção como executivos da fé. Não há mais espaço para o ego na exibição dos seus talentos. Mortos com Cristo, não há mais lugar para nós, pois agora, é o Cristo vivo quem vive em nós. Eu morto, eu deposto. Isto é severo, cruel e radical para as aspirações do egoísmo humano, mas isto é o Evangelho.
A radicalidade do Evangelho de Deus ou da mensagem da cruz não está só no fato de que Cristo morreu por nós, ainda que isso seja verdade, mas, no fato de que - nós morremos com Ele e não restou nada para nós fazermos, já que é Cristo quem vive e age em nós e é dEle, por Ele e para Ele que são todas as coisas. Isto é deveras ofensivo e desconcertante para o ego, todavia, é a boa notícia da libertação do Evangelho de Deus.